“De todas as restrições à democracia, a federação tem sido a
mais eficaz e a que mais favorece a harmonia. ...O sistema
federativo limita e restringe o poder soberano, dividindo-o e
concedendo ao governo apenas certos direitos definidos. É o único
meio de refrear, não só a maioria, mas o poder do povo inteiro”. –
Lord Acton
No campo das relações internacionais, o século XX demonstrou que se pagou caro ao se abandonar as bases do liberalismo do Século XIX. A lição que paulatinamente vem sendo compreendida indica que as formas de planejamento econômico aplicadas internamente, em escala nacional, produzem efeitos externos que desgastam as relações com outros países. Pouca esperança haverá de uma paz duradoura ou de uma ordem internacional enquanto cada país achar que pode e deve aplicar quaisquer medidas que julgue úteis ao seu interesse imediato, por mais nocivas que possam ser para os demais. As medidas de planejamento econômico centralizado só são exequíveis quando se é capaz de afastar todas as influências externas, provocando restrições ao trânsito de pessoas, bens, serviços e causando atritos diplomáticos e no limite até bélicos.
Uma falácia que persistiu por muito tempo (e ainda persiste em algum grau) é a de que em vez de a concorrência (o mercado) ser o locus natural de negociação, os Estados nacionais e/ou grupos organizados deveriam assumir um papel de negociadores e, assim, os atritos internacionais seriam reduzidos. Ora, isso transferiria uma luta concorrencial dispersa (e sem uso da força) entre vários compradores e vários vendedores (atomizados) para uma luta concentrada, a cargo de Estados poderosos e armados, não limitados por qualquer lei superior. O espaço para acirrar rivalidades e causar choques de grandes dimensões se amplia consideravelmente.
Há ainda uma corrente que prega, como possível solução, que se deveria criar uma poderosa entidade supranacional para lidar com essas questões negociais entre países. Contudo, há muitas dificuldades e perigos embutidos nessa tese. O fato é que há uma complexidade não desprezível nesse tipo de processo. Se planejar a vida econômica de uma família não é difícil, planejar a de um bairro ou cidade é mais complexo, a de um estado federado ainda mais e a de um país, muito mais difícil (dada a complexidade crescente de variáveis e interesses que se somam). Imagine então um planejamento supranacional, com diversos países de distintas realidades e capacidades entre si… À medida que a magnitude de atores e interesses diversos aumenta, diminui o grau de consenso potencial a respeito da importância relativa de cada objetivo posto à mesa. Tragicamente, ou se chega a um ponto de um consenso quase impossível - tornando tal aparato supranacional pouco útil - ou se chega a um ponto limite em que para se obter o consenso há que se usar a força e a coerção.
Como bem assinala Hayek, a respeito dessa tese, em um excelente trecho dessa obra “quem acredita na existência de ideais comuns de justiça distributiva que levem o pescador norueguês a abrir mão de suas perspectivas de melhoria econômica a fim de auxiliar seu colega português, ou o trabalhador holandês a pagar mais pela sua bicicleta para ajudar o mecânico de Coventry, ou o camponês da França a pagar mais impostos em apoio à industrialização da Itália?”
Praticar justiça e equidade em pequena escala, perante poucos indivíduos em um caso concreto, como fazem os magistrados, já é per se algo complexo, nada trivial. Praticar em larga escala, mantendo esse mesmo grau de justiça e equidade, torna-se algo mais difícil ainda. Hayek pondera, nesta obra da década de 1940, algo que traz muita semelhança com o recente movimento do Brexit. Diz ele (acertadamente) que o povo inglês certamente se rebelaria ao compreender que uma minoria em uma comissão supranacional (uma autoridade não-britânica) poderá delinear diretrizes para o desenvolvimento econômico, declarando uma precedência no desenvolvimento da metalurgia espanhola sobre a do país de Gales, a concentração da indústria óptica na Alemanha com a exclusão da Inglaterra, ou que a Inglaterra só poderia importar a gasolina já 100% refinada e não produtos petrolíferos intermediários. E frise-se que, no caso do Brexit, ocorrido há menos de uma década, o grau de intervenção da União Europeia nem era algo perto do que os socialistas fabianos defensores de uma entidade supranacional propunham.
O planejamento econômico em escala internacional, apenas acirra os ânimos e só pode ser executado pela lei da força: a imposição por um punhado de burocratas e políticos do tipo de atividade econômica a ser desenvolvido e em que condições (regulatórias, creditícias, tributárias etc) pelos demais concidadãos e, com isso, consequentemente, ocorrerá uma artificial a imposição (arbitrária) do padrão de vida que se julga que aqueles povos daquelas regiões merecem.
O argumento que tais comitês seriam democráticos, isto é, com representantes eleitos pelo povo não garante per se qualquer coerência entre a vontade do povo e os resultados obtidos. A multiplicidade de culturas e até de capacidades econômicas atuais e nascentes de diversos países, dificilmente pode ser coordenada e harmonizada por um grupo de representantes que definiriam de forma isenta e acertada as vocações produtivas de cada país membro dessa entidade.
Até mesmo outras questões aparentemente mais simples e positivas aos olhos do (leigo) povo, como a definição de um salário-mínimo mais alto, que poderia ser reivindicada pelos membros dos países mais ricos, de modo a garantir e preservar um nível de renda satisfatório aos seus trabalhadores, culminaria em um desastre: os países mais pobres não conseguiriam cumprir materialmente tal determinação de um piso salarial mais elevado e ao tentarem fazê-lo isso certamente implicaria em maiores níveis de desemprego e de inflação para esses países mais pobres. Até mesmo medidas com aparência humanista e bem-intencionada, podem resultar em sérios problemas econômicos dada a disparidade natural que existe entre os países.
Outro ponto de alerta que Hayek faz é que a existência dessa entidade supranacional não passaria, na prática, de um desdobramento lógico e inevitável da própria doutrina socialista. As nações mais ricas muito provavelmente despertariam a inveja e ressentimento (e até ódio) das mais pobres e, se tal entidade detivesse um poder de justiça redistributivista (entre ricos e pobres), como autoridade internacional, teríamos uma clássica luta de classes desdobrada entre nações.
O desejo de se levar a cabo um “planejamento para igualar os padrões de vida” é algo muito em voga. Porém, na prática, esse tipo de medida implica em dificuldades operacionais e em malefícios que não recomendam que seja empregada. Ao se tentar implementar um plano para reduzir e até posteriormente igualar as condições de vida, é necessário elencar uma hierarquia de prioridade entre as múltiplas reivindicações sobre a mesa, cada qual de acordo com o seu mérito, aos olhos dos julgadores.
Porém, indo de forma mais concreta ao problema, Hayek propõe a seguinte reflexão: “não há base lógica que nos permita determinar se as reivindicações do camponês pobre da Romênia são mais prementes ou menos prementes do que as do albanês, ainda mais pobre do que ele, ou se as necessidades do pastor das montanhas eslovacas são maiores que as do seu colega esloveno”. Para decidir a prioridade de cada um, arbitrariamente será necessário comparar os méritos de cada reivindicação, decidindo de forma subjetiva, qual tem maior premência frente a outra e assim por diante, pois não se trata de uma decisão técnica, mas sim política. Muitos serão então obrigados a trabalhar e a verter parte de seus resultados a outras regiões mais ineficientes.
Sé já é algo difícil decidir com justiça e equilíbrio em um microcosmo, dentro de uma empresa, quais trabalhadores são mais dignos de mérito do que outros (e isso sempre tender a gerar rancores e ressentimentos), imagine uma decisão que perpassa várias empresas, de múltiplos setores, de diversos países, com culturas e realidades distintas? Não há como pensar que haveria solução satisfatória que não fosse despertar ressentimentos e até hostilidades em uma escala ainda maior.
Como também pontua Hayek, é impossível haver justiça e se permitir que cada indivíduo viva a sua vida de acordo com o que melhor lhe aprouver, tomando decisões por si só, quando é uma autoridade central quem definirá a alocação de recursos financeiros, creditícios, de matérias-primas, fazendo com que o esforço “espontâneo” dependa (na realidade) da aprovação de uma autoridade central, sem a qual nada se pode fazer.
Os poderes que seriam concentrados em uma autoridade de planejamento central supranacional jamais seriam poderes apenas econômicos específicos, que fique claro. O planejamento econômico não é uma atividade puramente técnica a ser resolvida por especialistas de forma objetiva a ser referendado pelas autoridades políticas. Mesmo os mais capazes e bem-intencionados políticos e tecnocratas, armados com tamanho poderio investido neles, jamais seriam capazes de exercitar tais competências sem se valer de coerção, subjetividade e arbitrariedade, sem desagradar ainda mais os povos preteridos e sem provocar, na realidade, um resultado econômico pior do que o previamente à intervenção supranacional.
O (aparentemente) simples controle de alguns insumos ou matérias-primas como combustíveis, madeira, borracha, cobre ou estanho por um pequeno grupo de “especialistas” poderia desencadear (de um dia para o outro) o sucesso ou insucesso de nações inteiras e a melhoria ou regressão de patamares econômicos de renda per capita e emprego. Tamanho poder jamais deverá ser confiado a um grupo de burocratas e políticos, mas sim deve estar o mais disperso quanto possível na própria sociedade, nos povos dos diversos países que via mercado, via pactuação voluntária, conhecem melhor sua realidade local, suas potencialidades e decidem o que produzir, o que consumir e o quanto pagar por cada produto, serviço ou matéria-prima.
O poder conferido a uma possível entidade supranacional de planejamento econômico é, basicamente, o poder de exercer um amplo controle sobre nossas vidas. É uma renúncia a uma parte claramente definida de sua soberania política que implicaria em não existir qualquer possibilidade de opor resistência real ao que for decidido pelo consórcio dos demais países.
Hayek pondera que a existência de alguma autoridade supranacional até poderia ser aventada, mas jamais com poderes positivos e de planejamento econômico central impositivo. Alguma autoridade internacional que pudesse ter poderes de natureza negativa, para vetar medidas claramente prejudiciais de um país com o outro, dissipando ou pelo menos mitigando os eventuais choques. A necessidade defensável de um órgão supranacional se daria para funcionar como um árbitro nos conflitos, analogamente ao que é Organização Mundial do Comércio (OMC), nos dias de hoje, embora inicialmente talvez estabelecida por grupos regionais (países da europa ocidental, Grã-Bretanha e EUA, por exemplo), para depois de expandir globalmente.
É necessário asseverar, como fez Hayek, que uma entidade supranacional jamais poderá atuar como se fosse uma concentradora dos poderes subtraídos de seus Estados nacionais membros. O Estado soberano é algo que deve ser preservado, bem como os poderes das autoridades locais. Não lograremos preservar a democracia ou desenvolvê-la se todo o poder e a maioria das decisões relevantes ficarem nas mãos de uma organização tão vasta que o homem comum não consiga nem fiscalizar ou, nem mesmo, compreender. A autodeterminação em nível local, com poder efetivo de ação, vem a constituir um importante adestramento político para os futuros líderes e também para os próprios cidadãos, que exercem sua cidadania e seu civismo. Só a prática em nível local, em assuntos em que o povo pode compreender e no qual o próprio governante local possa atuar sentindo de perto as condições dos cidadãos impactados por suas decisões (a pressão, o pulso da sociedade), podem fomentar um caminho de responsabilidade na condução dos assuntos públicos.
Quando é retirado do nível local para um nível nacional ou supranacional uma quantidade grande de competências e, como resultado, são tratadas muitas questões em que há um claro distanciamento entre decisores e os afetados, bem como, dada a complexidade que daí é advinda, poucos do povo detêm conhecimento teórico para compreender ou mesmo capacidade de mobilização para pressionar seus representantes tão distantes, aí temos a receita certa para que o povo esteja alijado da política e para que os impulsos criativos também se retraiam. Hayek cita a Suíça e a Holanda como exemplos de países em que há uma descentralização maior de poderes, tal como também há nos EUA, e que até a própria Inglaterra teria a aprender com eles.
Uma autoridade internacional que consiga limitar de modo efetivo o poder (arbitrário) do Estado sobre os indivíduos será uma das melhores possibilidades para a paz, no pós-guerra, defende Hayek. Um instrumento do Direito Internacional de salvaguarda natural tanto para a tirania do superestado sobre suas comunidades nacionais, como para proteção do Estado perante o cidadão. Nem um Estado supranacional onipotente, nem uma frouxa associação inepta. O que se deve tentar, como linha de ação nos negócios internacionais, é alcançar um acordo que constituirá em si mesmo a oportunidade de mostrar sinceridade e que se está disposto a aceitar as mesmas restrições à nossa liberdade de ação que, por um interesse comum, achamos necessário impor aos outros. Uma via recíproca, de mão dupla, portanto, que tem a probabilidade maior de congregar e harmonizar os partícipes do que opô-los.
CONCLUSÃO
Hayek finaliza a obra ressalvando que o estabelecimento de uma nova ordem é um processo longo e árduo, mas desejável e até necessário, para mudar o panorama do que se viu nos últimos 25 anos (época que veio a culminar com a segunda guerra mundial). Um projeto como esse será fruto de um trabalho minucioso, feito a várias mãos, porém a discussão prévia de princípios orientadores gerais e a diagnose dos erros passados, são etapas essenciais. Um desses erros foi adotar um modelo de Estado centralizador, dirigista e controlador que representou e sempre representará óbices à energia criativa dos empreendedores. Ademais, é necessário reconhecer que não existem tendências inevitáveis e um caminho predestinado, como muitos simplistas querem nos fazer crer. Os intelectuais e políticos que mais proclamam essa inevitabilidade de uma nova ordem histórica são justamente os mais adeptos das ideias totalitárias que, por fim, nos arrastaram para a guerra.
Devemos, também, conscientizar a nova geração de jovens do que efetivamente é o liberalismo, o que efetivamente são as ideias do laissez-faire do século XIX, que causaram a maior aceleração de renda e bem-estar já vista na história da humanidade. O termo vem sendo deturpado e associado de forma imprecisa (e até contrária) a certas condutas e políticas muito distantes do que realmente ele significava, originalmente. Se nós fracassamos como nações, na primeira metade do século XX, em carregar a tocha e o legado do liberalismo, devemos nos preparar melhor para essa tão importante tarefa de sua defesa e aprimoramento.
Hayek encerra dizendo o que a essa altura todos os leitores já devem ter, enfim, compreendido: “O princípio orientador de que uma política de liberdade para o indivíduo é a única política que de fato conduz ao progresso, permanece tão verdadeiro hoje como o foi no século XIX”.
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