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Capítulo 9 - Segurança e Liberdade - O caminho da servidão - Hayek

“A sociedade inteira se terá convertido numa só fábrica e num só escritório, com igualdade de trabalho e igualdade de remuneração”. Lênin (1917)


“Num país em que o único empregador é o Estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio ‘quem não trabalha não come’ foi substituído por outro: ‘quem não obedece não come’” . Leon Trotsky (1937)


A segurança econômica e a liberdade econômica são frequentemente vistas como essenciais para que exista a verdadeira liberdade. É verdade que independência de espírito e a força de caráter são raros naqueles que não confiam na própria capacidade, de trilhar seu caminho. Porém, o conceito de segurança econômica é vago e ambíguo e o anseio pela segurança econômica absoluta pode, em vez de viabilizar a liberdade, tornar-se uma grave ameaça a ela.


Há dois tipos de segurança que precisam ser entendidos. Uma segurança limitada, pela qual o anseio é legítimo, e outra segurança absoluta, que não pode ser concedida a todos, exceto casos especiais como dos magistrados, em que a independência deve ser garantida de forma total. A primeira segurança, que poderia ser resumida em a salvaguarda contra graves privações físicas e a certeza de que um mínimo, em termos de meios de sustento (renda ou assistencialismo mínimo), será garantido a todos. Nada de criticável há que sociedades que já atingiram um patamar de riqueza considerável possam aspirar garantir essa segurança limitada, sem exageros. É possível garantir a todos alguma assistência para facilitar acesso a um mínimo suficiente em alimentação, roupas e habitação, para conservar a saúde e a capacidade de trabalho.


Em outro sentido, a garantia de uma previdência social ou também de assistência em casos de calamidades é defensável, isto é, se a ação estatal pode mitigar as consequências de desastres dos quais o indivíduo pouco pode se defender ou mesmo se precaver, deve ser empreendida. O problema, contudo, ocorre quando essa ideia de segurança passa por querer amenizar as flutuações naturais de uma economia, que sempre passa por períodos de expansão, acomodação e retração, de modo a, como solução, se engessar a economia e, no extremo, até substituir-se o sistema de mercado. 


O problema dessas políticas ocorre quando elas buscam proteger indivíduos específicos ou grupos, contra a redução de suas rendas, ou seja, movimentos econômicos que são inerentes a uma economia competitiva com um sistema de livre concorrência. O problema reside em olhar para méritos ou justificações carregados de subjetividade, em vez de se olhar para os resultados como uma medida mais neutra e objetiva (ainda que imperfeita) do esforço individual.


Por conta do avanço tecnológico, há profissionais cuja habilidade, treinada e desenvolvida por anos, torna-se pouco útil em pouco tempo, havendo perda de renda considerável. Medidas em seu favor, para salvaguardar suas expectativas financeiras prévias, por vezes encontram apelo popular em certos nichos do eleitorado. Contudo, garantir uma renda protegida e que não flutue ou diminua, para certos grupos, acarreta colocar outros grupos em situação de maior risco e de menor remuneração, dado o ônus dos tributos que recairão sobre os que terão de arcar com o real custo dessa política compensatória.

Essas políticas, ainda que bem-intencionadas, tendem a atrair mais interessados em ganhar seu bônus e aumenta de forma crescente o poder arbitrário da autoridade que tem de definir quem é mais ou menos merecedor dessa política de proteção. Como resultado global, agrava-se a situação e a própria remuneração passa a ser cada vez menos um mecanismo de estímulo saudável e adequado para que os indivíduos se esforcem e empreendam, modifiquem a realidade e agreguem valor a seus concidadãos, à medida que essas remunerações passarão a ser cada vez mais fruto de decisões arbitrárias estatais do que da valoração da utilidade pelos concidadãos consumidores no mercado. O efeito destrutivo da arbitrariedade decisória do governo e do desincentivo ao potencial criativo e empreendedor é simplesmente muito grande e, aliás, nos tempos modernos, não é por mero acaso que as principais empresas que revolucionaram a tecnologia e agregaram valor, estão nos EUA e não na América-Latina ou no Oriente Médio, por exemplo, tão conhecidos por sua postura estatista, desconfiante e hesitante com a livre concorrência ou, por vezes, até mesmo francamente antimercado.


Os incentivos importam e muito. É francamente impossível de imaginar que um indivíduo dará o melhor de si, nos estudos e no exercício laboral ou de empreender, quando seu resultado final será fortemente atingido por arbitrariedades estatais. E com isso, quem mais perde não é ele apenas, mas a sociedade como um todo, que passar a exportar os cérebros mais produtivos para países onde a livre concorrência de fato existe. Qualquer semelhança com o Brasil nas últimas décadas, que exporta seus melhores talentos para EUA, Canadá, Europa e Austrália, não é mera coincidência.


No campo gerencial, de uma empresa que não mais opera sob livre concorrência, como o incentivo que ali impera não é o econômico em si, mas sim o atingimento de uma meta e de normas arbitrárias decididas pelo regime, a noção de lucro, competência e risco pouco importa. O que de fato importa é apenas a obediência mecânica e temerosa ao planejador estatal. Perde-se o incentivo à inovação e os trabalhadores tornam-se reféns quanto à sua vida e à sua ocupação.


Hayek coloca os termos de forma antagônica e direta, para expor a irreconciliável situação que se põe: de um lado temos uma sociedade comercial (onde o livre exercício da vontade prevalece), de outro uma sociedade militar. Naquela, há liberdade de escolha, enquanto nesta há a hierarquia e o dever de obediência, em nome de regras e metas estabelecidas de forma claramente top-down, sem liberdade substancial de ação ou decisão para seus membros.


O perigo para o qual se alerta é que o desejo por mais segurança econômica, ainda que seja inicialmente com intervenções mais brandas, tende com o tempo a gerar uma espiral de aumento de demanda por políticas dessa natureza que permearão cada vez mais grupos ou categorias e, ao longo de anos, o desejo por segurança pode chegar a minar o apreço que se tinha pela liberdade. Essa tendência perigosa e irrefreável se dá porque cada vez que se confere mais segurança a uns, maior será o grau de insegurança de outros (que pagarão a conta), que passam por sua vez a sofrer e a perceber as oscilações econômicas de maneira ainda mais aguda e a demandar por mais segurança também. Qualquer benefício concedido a uma indústria ou categoria, para proteger seus rendimentos, ocorre sempre às expensas de outros, cabe repetir, que irão requerer também proteção ao Estado.


Em um sistema de mercado onde a intervenção por segurança será realizada, isso só pode ser operacionalizado por meio de políticas restritivas. Isso se dá, via de regra, restringindo o quantitativo da produção de um bem para, ao se diminuir sua oferta, gerar uma valorização dos preços, de modo a garantir uma renda maior ao grupo ou categoria protegida (ou também via privilégios fiscais que aumentam os lucros). Em outros casos, em vez de atuar na quantidade ofertada, o preço mínimo é que é fixado, como nas políticas de proteção ao preço de gêneros alimentícios, por exemplo. Ambas as políticas resultam no beneficiamento dos produtores às expensas dos consumidores, que pagam mais caro e podem comprar menos e com pior qualidade do que se o preço fosse livre.


Por sua vez, o que pode ocorrer, no âmbito de um mercado laboral protegido, é a restrição ao ingresso em certas categorias profissionais, de modo a valorizá-las, como ocorre com a advocacia em muitos países, incluindo o Brasil. Como resultado final, além do preço mais caro aos consumidores, vários candidatos a advogados são alijados do mercado por conta de exigências formais (como o duro exame da OAB), o que prejudica seu futuro profissional, sua perspectiva de auferir rendimentos, sua empregabilidade e a sua própria sensação de insegurança econômica como um todo.


O mesmo fenômeno citado no parágrafo anterior pode ocorrer em nível corporativo de formas análogas. Empresários bem relacionados, com fácil acesso ao Estado, via lobby em agências reguladoras (e órgãos administrativos similares) ou via legislativo, criam barreiras legais e administrativas via uma complexa regulamentação ou restrição à importação (quotas, taxação ou mesmo proibição), de modo a alijar seus competidores, conferindo poder para concentrar o mercado em poucos players e, assim auferirem (artificialmente) maior renda para si. Como resultado, são enfraquecidos ou retirados do mercado empreendedores menores ou novos entrantes que poderiam estar gerando mais empregos, mais renda e aumentando a competitividade do mercado. Como bem sabemos, é por meio do saudável mecanismo da livre concorrência, onde cada empresa briga pelo cliente, se esforça para oferecer uma solução em serviços ou produtos que seja melhor que a de seu concorrente, que se pode obter contínua melhoria do que é oferecido ao mercado.


Não é preciso ir tão longe para lembrar, por exemplo, das restrições (ou melhor proibição) à importação que existiam na década de 1980, por conta da Lei da Informática, patrocinada pelo governo militar, com claro viés estatista e protecionista. Os computadores que estavam acessíveis no mercado, de fabricação nacional, eram muito piores e muito mais caros do que os disponíveis nos demais países, a tal ponto que havia até contrabando de computadores, via mercado negro, para o país. Quem ganhou? Os empresários com acesso ao poder, que fabricaram produtos ruins com pouquíssima concorrência real. Quem perdeu? Os consumidores e a sociedade como um todo, dado que os custos produtivos e transacionais foram fortemente impactados para baixo, com o avanço da informatização que infelizmente chegou tardiamente por aqui, por conta dessa arcaica lei e do atraso que ela provocou.

Como bem sumariza Hayek, “assim, quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança interferindo no sistema de mercado, tanto maior se torna a insegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos”. Segurança esta que configura claro privilégio (imerecido).


Os mecanismos retóricos argumentativos de menosprezo pelas atividades que envolvam risco econômico e/ou a condenação moral dos lucros, foram (e ainda são) bastante comuns nessa batalha de ideias. Nossos jovens são submetidos a um ambiente cultural (na escola ou na mídia) em que se pintam os lucros como imorais e o ambiente corporativo como lugar de exploração, em um clichê raso que, porém, encontra eco em uma etapa de vida (a juventude) em que é natural alguma insegurança em relação ao futuro que ali a frente se descortinará. Não é por mero acaso que a doutrinação é feita justamente desde cedo, nessa época tão fértil e propícia a simplismos que amedrontam, que capturam a atenção e que conclamam os jovens a uma cruzada moral contra o mundo corporativo capitalista (ou no melhor dos casos incutem um ceticismo agudo em relação a ele), quando, na realidade, a atitude mais sensata seria a de trazer luz e esclarecimento, com seriedade intelectual e factual com a realidade do mundo econômico e laboral. Seria muito mais sensato e honesto expor como ele de fato opera, como a economia funciona, como que a fonte da riqueza advém da agregação de valor e da oferta de bens e serviços úteis a seus concidadãos consumidores.

A cultura de uma certa ode ao funcionalismo público, comum na França e também (em maior grau) no Brasil, acaba sendo um reflexo desse fenômeno. Mais valor moral se dá a alguém que vá compor os quadros de um órgão governamental para realizar o suposto “interesse público”, o “bem comum”, ainda que ali pouco se produza de fato, do que a alguém que se coloca como a favor do capitalismo e da livre inciativa.


Hayek elenca o caso da Alemanha como um exemplo do perigo que a mentalidade estatista e contrária à livre iniciativa pode ocasionar. De modo irretocável ele pondera que “em uma sociedade em que o indivíduo conquista posição e honras quase exclusivamente em função de ser um servidor assalariado do governo; em que o cumprimento do dever prescrito é considerado mais louvável do que a escolha do próprio campo de atividade; em que todas as ocupações que não conferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito a um rendimento fixo são julgadas inferiores e até certo ponto aviltantes – seria demais esperar que a maioria prefira por muito tempo a liberdade à segurança”. O problema dessa mentalidade é que a sociedade civil ao abrir mão para o Estado controlar quase tudo (ou tudo) na vida civil e econômica, pode propiciar poder de ação para se engendrar os piores tipos de engenharias sociais e desastres humanos, como foram claramente o nazifascismo e o socialismo no século XX.


Fica uma observação de que o Estado que detiver condições econômicas deve sim aumentar o grau de segurança de seus cidadãos contra as privações desmesuradas, por fenômenos naturais imprevisíveis, e também, por infortúnios pontuais e circunstanciais da vida laboral ou para pessoas hipossuficientes e/ou com enfermidades e graves transtornos mentais, por exemplo. Porém, o grau dessa segurança dever ser limitado e não pode constituir obstáculo à tão essencial liberdade individual e ao mecanismo da livre concorrência, sob o risco de que se venha a perder a própria liberdade para decidir sobre os rumos de nossas vidas. O hábito contraproducente dos intelectuais de se exaltar a segurança em detrimento da liberdade é deveras danoso. Hayek considera urgente que se readquira o apreço pela liberdade, tão característico das nações anglo-saxônicas, e cita uma célebre frase de Benjamin Franklin, um dos pais fundadores da América, que se aplica tanto a nações, como a indivíduos: “aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança”.

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