4.1 As objeções não econômicas ao argumento da Felicidade
Há duas críticas bastante comuns ao capitalismo que se delineiam da seguinte forma: 1) a posse de bens como um carro ou uma TV não faz o homem feliz; e 2) existem pessoas que até hoje não possuem esses objetos, como se o capitalismo não proporcionasse tudo a todos e fosse um sistema inerentemente excludente. Olhando sob um prisma lógico e formal, ambas assertivas não parecem frontalmente erradas, a priori, mas são incompletas e incapazes de denegrir o sistema capitalista, que é um sistema essencialmente de cooperação. Elas apenas precisam, contudo, ser melhor analisadas, em detalhes.
As pessoas, na vida, não se esforçam para obter a felicidade perfeita, mas sim para eliminar dificuldades o tanto quanto possível, para que possam ser mais felizes do que eram antes. Quem compra um bem ou serviço o faz com o intuito de melhorar sua vida, aumentar seu bem-estar, tal qual quem vai ao médico busca diminuir sua dor ou mal-estar. Nos movemos, agimos no mundo real, dia após dia, mês após mês, ano após ano, em busca dessa melhoria relativa de bem-estar.
Decerto que há budistas ou outros tipos de seres humanos com filosofias minimalistas que vivem na penúria (e até na sujeira) e não sentem nenhuma inveja de outras pessoas mais ricas. Todavia, esse tipo de vida parece ser insuportável para a maioria das pessoas, isto é, para elas o desejo inato é o de melhorar de vida, aumentar seu bem-estar. Ademais, um dos grandes sucessos do capitalismo foi o aumento da qualidade e da expectativa de vida, bem como a diminuição da mortalidade infantil. É inegável que isso removeu causas de infelicidade e tornou muitas pessoas relativamente mais felizes.
A segunda acusação, de que o capitalismo teria uma natureza excludente, é mais problemática quando analisada de perto. As inovações que permitem melhorias materiais, mudanças positivas concretas na condição de vida dos seres humanos, são primeiramente conseguidas por meio de um pioneirismo cujo acesso se dá a poucos. Contudo, após um tempo, o próprio mecanismo de incentivos, de conseguir aumentar as vendas (e lucros) faz com que bens e serviços acabem sendo barateados e se tornando mais acessíveis ao mercado de massa. As senhoras e cavalheiros de classe mais alta que primeiro utilizaram sabonetes como os conhecemos hoje, foram os precursores do mercado de massa que se criou dali em seguida, o mesmo valendo para "n" outros produtos hoje comercializados, como os automóveis. Se hoje quem tem meios para adquirir um celular sofisticado ou um computador de última geração não o faz, sob a justificativa de que muitos não podem ter acesso a isso, não estaria promovendo, mas sim contribuindo para retardar que tais itens sejam popularizados mais rapidamente.
4.2 Materialismo
Há os que atacam o capitalismo pelo que denominam, jocosamente, de sórdido materialismo. Não conseguem deixar de admitir, pelo visto, que o capitalismo melhora inequivocamente as condições materiais das pessoas. Argumentam, contudo, que o sistema estaria alienando as pessoas e afastando-os de objetivos mais nobres e elevados. Alimenta o corpo, mas enfraquece espíritos e mentes. Arruinou o mundo das artes, restando apenas o lixo cultural.
O julgamento de mérito de obras artísticas é deveras subjetivo. Não existe medida objetiva para julgar algo como o valor artístico de um poema ou de um edifício. Certas pessoas admiram o que outras claramente desprezam e, para as primeiras, essas últimas são seres rudes, insensíveis à arte sofisticada. Decerto que entre os que se pretendem ser educados há muita hipocrisia. Assumem ares de conhecedores e simulam interesse por artistas e obras do passado. Não demonstram a mesma empatia por artistas contemporâneos que ainda lutam por reconhecimento. A aparente apreciação aos velhos mestres é apenas um meio de alimentar o ego e ridicularizar os novos artistas que se afastam dos cânones tradicionais. De todo modo, como não há um mínimo consenso na apreciação das obras, não se pode de fato corroborar os rumores sobre a decadência da arte como fruto da era do capitalismo. Não é possível, pois, contestar os erros como se faz num raciocínio lógico ou no cotejo de fatos históricos em contraste com uma narrativa.
Há que se reconhecer que cada época pode ter um caráter próprio em suas realizações artísticas que não necessariamente é pior ou melhor, mas sim que demonstra uma distinção. O que valoriza uma obra, o que dá relevo historicamente, acaba sendo as características que a tornam diferentes das outras, isto é, o que constitui o estilo de uma época. Nesse sentido, especificamente, os enaltecedores do passado podem até ter alguma razão ao apontar que as gerações mais recentes não nos legaram monumentos ou edificações únicas como as pirâmides, templos gregos, catedrais góticas, igrejas e palácios na renascença e do barroco. As construções de igrejas ou catedrais parecem, no último século, apenas repetições dos estilos e concepções antigas. O mesmo se poderia dizer das silhuetas da arquitetura urbana moderna.
Os motivos disso, contudo, são variados. Não se trata de uma degeneração artística inerente ao capitalismo per se. O conservadorismo das igrejas, nos séculos recentes, afasta qualquer possibilidade de inovações nesse campo. Indo adiante, a riqueza dos empresários capitalistas, por seu turno, é tão inferior à dos reis e príncipes de outrora, que eles não podem se permitir tão luxuosas construções, não se pode edificar Palácios como de Versailles ou o Escorial. Ademais, na própria seara governamental, a autorização para construção de edifícios suntuosos não mais emana de déspotas que podem não se importar em absoluto com a opinião pública. Comissões de burocratas e juntas administrativas não estão mais dispostas a adotar ideias pioneiras extravagantes, no uso do dinheiro público, em geral.
Jamais houve alguma época em que a maioria, as massas, estivessem prontas para fazer justiça à arte de seu tempo. Reconhecer os grandes autores e artistas, que se tornarão os clássicos de amanhã, sempre foi um talento de antevisão que poucos têm. Logo, o que caracteriza o capitalismo, no que tange às repercussões nas artes, não é que ele tenha deteriorado qualitativamente o mundo artístico, per se, mas sim que uma camada popular de grande número passou a ser também consumidora de literatura e artes e, assim, o mercado está invadido e inundado de obras consideradas banais, destinados a essa enxurrada de consumidores. Isso, per se, não impede, como nunca impediu no passado, o surgimento de autores de relevo, de valor, capazes de criar obras que ainda serão consideradas clássicas, imortais.
Críticos também derramam lágrimas pela suposta decadência das artes industriais. Comparam mobílias antigas de castelos e de aristocratas com as peças baratas feitas para produção em larga escala. Ora, tais mobílias foram feitas para pessoas da nobreza, de uma elite econômica abastada, enquanto as mobílias feitas nas indústrias modernas foram, de fato, projetadas para serem as mais baratas possíveis, sem elevada preocupação estética. O objetivo era torná-las acessíveis ao mercado de massas, vender a quem tinha parca mobília ou, até, mobília alguma. Mais tarde, quando o padrão de vida de boa parte das massas já havia se elevado, é que se verificou o surgimento mais pujante de nichos de mercado de coisas mais refinadas e esteticamente bonitas. Essa predisposição romântica quanto ao mundo das artes e da estética, tende a cegar esses críticos para o fato positivo e absolutamente defensável de que alguns sacrifícios estéticos são válidos e até mesmo desejáveis e necessários para que muitos cidadãos que antes pouco ou nada tinham, agora enfim possam acessar mobílias e outros bens do campo da arte e do design a preços acessíveis. A noção de "trade-off", de custo de oportunidade, e o reconhecimento de que o capitalismo acabou, no cômputo geral, melhorando a vida das pessoas, parece passar ao largo desses tipos românticos que acabam sendo críticos insensatos de um sistema e de uma realidade econômica que sequer conseguem compreender no nível mais básico.
4.3 Injustiça
Os mais enérgicos caluniadores do capitalismo são aqueles que criticam sua suposta injustiça. É contraproducente tentar mostrar que a realidade deveria ser de um jeito alternativo, como uma utopia, embora seja exatamente isso que o fazem. E o pior é que nesse processo eles acabam comparando realidade e fantasia com argumentos falaciosos que em nada contribuem para a real melhoria de vida das pessoas, muito pelo contrário.
Uma das piores ilusões que tais críticos têm é a de que a natureza conferiu a todo e qualquer indivíduo certo rol de direitos generosos, de que existe tudo para todos. Esse argumento se desenrola a partir de uma falsa premissa de abundância e de que, assim, se alguém está em condições precárias é porque foi despojado, roubado por outrem mais rico, sendo, portanto, seu direito inalienável e justo de reaver a sua suposta bonança de volta. O fato é que todos nascemos em grande parte pobres e, no mundo real, a natureza não é generosa, mas sim mesquinha. Não há abundância, mas sim escassez de recursos. Mesmo imerso na natureza, o homem teve de aprender a domar animais e plantas (que muitas vezes nos são verdadeiramente hostis) para garantir um mínimo de sua sobrevivência. Os homens, ao utilizarem a razão e ao cooperarem sob um sistema de divisão do trabalho, é que conseguiram criar um nível maior de riqueza que os justiceiros sociais consideram algo puramente espontâneo, uma bonança naturalmente posta.
O que realmente importa (ou deveriam importar) no debate público não é se arvorar num falso princípio natural ou divino de justiça distributiva, mas sim promover e defender as instituições sociais que permitem às pessoas buscar livremente seu próprio desenvolvimento e buscar o aumento da produção dos bens e serviços para si e para outrem. Defender o sistema de liberdade que promove melhorias materiais inequívocas.
Por vezes, certos segmentos de organizações religiosas adotam discursos em que denunciam supostas injustiças distributivas. O Conselho Mundial das Igrejas, organização ecumênica de Igrejas Protestantes, declarou em 1948: “A justiça exige que os habitantes da Ásia e da África, por exemplo, sejam beneficiados por uma maior produção industrial". Contudo, isso só faria sentido se alguém supusesse que Deus teria de presentear a humanidade com parques industriais equidistribuídos entre os países e diferentes povos e que, a Europa e a América do Norte surrupiaram tais máquinas para si, promovendo um desequilíbrio na justiça originalmente estabelecida divinamente.
O ponto central que precisa ser entendido, nessa discussão, é que a maior riqueza vista no Ocidente é fruto do capitalismo "laissez-faire" que impulsionou a produtividade. Foram instituições sociais que forjaram esse desenvolvimento. Não é culpa dos europeus ou dos norte-americanos se os asiáticos e os africanos quiseram dotar-se de outras vertentes político-ideológicas que limitam seu avanço material interno ou, até mesmo, dificultam que o investimento externo possa ali gerar melhores condições de vida. A manutenção de métodos fabris mais primitivos, pouco tecnológicos, menos produtivos, é fruto de poucos incentivos à inovação e ao empreendedorismo, bem como ao fechamento ao ambiente internacional, na seara econômica. A solução, portanto, não é redistribuição, apropriação do patrimônio alheia, mas sim a substituição de políticas intervencionistas por políticas sadias e competitivas, pelo capitalismo ao estilo "laissez-faire". Enquanto predominarem mecanismos de taxação expropriatória, de barreiras ao comércio internacional, controle maciço de fluxo de moedas e de investimento estrangeiros, bem como mecanismos que inibem o acúmulo interno de capital e não promovem o livre mercado, a situação pouco mudará.
O capital, tão demonizado e vilipendiado, é, na realidade, o mecanismo que deve ser defendido, pois ele é quem permite a uma economia melhorar a sua produtividade e crescer. Tal qual um fazendeiro que, rudimentarmente, tem um excedente de sementes e de dinheiro que ele guarda para fazer o plantio da próxima safra e ampliar sua área cultivada e a produtividade por acre plantado, gerando mais alimentos e mais renda, o empreendedor também precisa de acumular uma quantia inercial para comprar máquinas e insumos que permitirão a continuidade bem como a expansão do negócio (ao investir na melhoria do processos fabris), gerando mais renda e bens e serviços para os consumidores. Sem essa poupança, sem esse acúmulo que é em boa parte reinvestido, não há como fazer crescer a economia e melhorar o nível de vida das pessoas. O capital, por conclusão lógica, não é uma dádiva gratuita de Deus ou da natureza, mas sim uma quantia fruto de uma prudente restrição de consumo por parte do homem, criada e mantida pela abstenção do apetite por gastos que. Se bem investido, o capital retornará frutos ainda maiores, permitindo o crescimento econômico.
Na seara da discussão conflituosa entre Capital x Trabalho e como ambos contribuem para o aumento de produtividade, é bom que se observe a questão sob o ângulo correto, verdadeiro, fugindo das falácias marxistas e pseudoeconômicas. O fato de alguns países terem uma população que é um quarto de outro (ou seja, força de trabalho visivelmente inferior) e ainda assim produzirem mais, no cômputo total, já demonstra que o capital utilizado tem uma importância sensível no processo produtivo. A melhoria no capital empregado, seja via máquinas com melhor tecnologia e processos mais inteligentes, foi o que catapultou a produção. Fazer mais com menos esforço (força de trabalho), em menos tempo ou com menor custo, é o que permite que se aufira maiores receitas e se pague melhores salários. Isso, repetimos, é algo que se consegue apenas mediante esforço prévio de poupança e aplicação inteligente desse capital, sem o qual, não há crescimento econômico e melhoria nas condições materiais.
Ademais, é necessário entender que não é a produtividade individual de um trabalhador per se que irá sempre provocar o aumento de renda dele, mas a produtividade marginal do trabalho do agregado das empresas inseridas na economia também. Um barbeiro certamente faz a barba de modo muito similar ao que fazia há 60 ou 80 anos, bem como um mordomo tem competências laborais relativamente estáveis nesse período de tempo. Contudo, auferem uma renda que cresceu ao longo do tempo. Isso se dá porque como os demais trabalhos fabris aumentaram em remuneração ao longo do tempo, para que seus empregadores pudessem reter esses profissionais originalmente empregados e eles não irem bsucar um emprego numa indústria, foi necessário que reajustassem seus salários para fazer frente a essa melhoria de produtividade. Por essa razão que empregadas domésticas são mão-de-obra tão cara e de relativo luxo, escassas, em economias desenvolvidas, onde o capitalismo floresceu. Quem as tem empregadas em seu domicílio tem de remunerá-las muito bem, do contrário há empregos fabris ou no setor de serviços que remuneram tão bem ou mais e elas podem trocar de empregador. Logo, não se dispõem a trabalhar por pouca remuneração, como acaba sendo o caso das empregadas no Brasil, que (por sua vez) não têm muitas alternativas viáveis de melhores empregos por nossa economia ter baixa produtividade, fruto de nosso preconceito tupiniquim com o capitalismo, que não o deixa prosperar e criar asas em nossas terras.
Logo, as doutrinas pseudoeconômicas que são detratoras e difamadoras do papel do capital são visivelmente absurdas. O que melhorou as condições materiais dos operários foi o acúmulo, o investimento e a multiplicação de capital, tornando possível o aumento de renda para todas as classes sociais, sobretudo dos que antes eram mais pobres. Nenhuma das análises e críticas de Marx e Keynes conseguiu demonstrar um só ponto fraco na demonstração de que só existe um meio de elevar de forma duradoura ou salários: poupar e empregar capital para aumentar a produtividade num ritmo maior do que o do crescimento populacional. Eis a dura verdade, para além de qualquer pseudoargumento sobre injustiça e redistribuição.
4.4 O “Preconceito Burguês” de Liberdade
A história da civilização ocidental pode ser retratada, sem exageros, como uma inexorável busca pela liberdade. A cooperação via divisão do trabalho foi o grande componente para explicar o seu sucesso na luta pela sobrevivência e na melhoria de seu bem-estar. Para o sucesso desse produtivo convívio em sociedade, contudo, devem haver mecanismos para repressão daqueles que não se coadunam com esse convívio pacífico e colaborativo. Algum mecanismo de pressão, de coerção, há que existir para tratar dos recalcitrantes, sendo este o Estado e o Governo. Daí, também, surge outro problema: como coibir aqueles homens que no exercício da função de Estado e Governo, também abusam de seus poderes, podendo transformar os cidadãos em virtuais escravos? Eis que a liberdade deve ser entendida como a liberdade individual, que existe para que também possamos nos proteger contra a ação arbitrária do poder estatal (policial, judicial ou administrativo).
O berço da ideia de liberdade se deu no Ocidente, na Grécia, cujos filósofos depois transmitiram aos romanos e mais tarde para o restante da Europa, para a América e aos países anglo-saxões. Foi a literatura política dos antigos gregos que deu origem às ideias dos monarcômacos (que combatiam o absolutismo monárquico e a tirania), à filosofia dos Whigs, às doutrinas de Althusius, Grotius e John Locke, bem como à ideologia dos pais das modernas constituições e declarações de direitos. Essa semente criou raízes, nos últimos séculos, e o fundamento da liberdade virou um pilar no estabelecimento de uma boa sociedade, dando origem ao capitalismo "laissez-faire", que transformou as condições materiais para melhor como nunca na história de milênios da humanidade.
Quando se fala em liberdade e nas instituições políticas, jurídicas e sociais que são fundamentadas a partir dela, falamos de aspectos centrais como governo representativo, "rule of law" ou o primado da lei, independência das cortes e tribunais em relação ao governante da ocasião, institutos vitais para liberdade como o "habeas corpus", a possibilidade de exame judicial dos atos administrativos, a liberdade de expressão e imprensa, separação entre Estado e Igreja, dentre outros elementos. Essas peças institucionais servem, de forma geral, para um grande e nuclear objetivo: possibilitar o controle e frear o eventual arbítrio dos governantes e funcionários do Estado contra os indivíduos, isto é, garantir a liberdade para o cidadão poder enfrentar eventual despotismo. A era do Capitalismo aboliu, no Ocidente, a escravidão e a servidão, pôs fim às punições cruéis, suprimiu a tortura e outros métodos censuráveis de se tratar suspeitos e infratores. Aniquilou obscenos privilégios e trouxe a importante prática de igualdade de todos os homens perante à lei. As vítimas de tiranias se transformaram em cidadãos livres.
O progresso material adveio como fruto natural dessa reforma nas condutas governamentais, agora mais refreadas e controladas. Foi dada liberdade, carta branca para que aqueles com tivessem vontade de empreender assim pudessem fazê-lo, desenvolvendo novas e pujantes indústrias e serviços que foram enfim tornados acessíveis às massas. A população teve um grande "boom", fruto dessas condições materiais advindas desse novo tempo de "laissez-faire". Desses avanços a olhos nus, adveio uma crença de que a evolução histórica marchava indelevelmente para a concretização plena, sem percalços, dessas instituições garantidoras da liberdade, de que nenhuma virada no rumo da história poderia deter esse movimento.
A história, contudo, sempre pode nos surpreender e se, de fato, nenhum movimento reacionário, que evocava aberta e despudoradamente a volta ao passado de servidão e absolutismo, teve destaque, por outro lado tivemos o florescimento de ideias antilibertárias camufladas como supostamente superlibertárias, como se defendessem um ideal de fraternidade e liberdade extremos, sob a roupagem do comunismo, socialismo e planejamento central. A ironia é que seres humanos inteligentes conseguem perceber que tais movimentos pregam justamente uma abolição da liberdade, ao passo que intelectuais socialistas propagam que a luta pelo socialismo é uma luta antiburguesa pela liberdade. A desfaçatez é tamanha que nos EUA essa ala que defende o socialismo se intitula de "liberals", o que já demonstra que a fraude intelectual começa pela capa, pelo próprio rótulo.
O motivo desse evidente descompasso, como já abordado, é fruto de que esses intelectuais socialistas procuraram desculpas e tentaram convencer outras pessoas de que o motivo de suas falhas e de seu próprio insucesso pessoal (e daqueles a quem buscavam convencer), não estava na sua própria inferioridade, mas sim em algo externo, na injustiça da organização econômica da sociedade, no bode expiatório do capitalismo. A culpa é sempre dos outros. O Estado, então, deveria agir para promover a dita "justiça social", que na prática seria presentear a mediocridade frustrada "de acordo com as suas necessidades". Tais ideias, se tivessem sido confinadas apenas a isso, ao mundo dos debates e não virassem programas concretos de governo, seriam apenas meros devaneios sem consequências. Porém, elas foram colocadas em prática e o que seu viu foi a miséria material, espiritual e pessoal de milhões que pagaram até com suas próprias vidas, seja por assassinato ou pela mais absoluta fome, vide a China de Mao Tse Tung.
O que muitos não compreendem é que nos regimes com feições e práticas comunistas, autoritárias, até mesmo os que são entusiastas do regime acabam sendo aniquilados por vezes. Não raros são os casos de banimentos, prisões e até assassinatos de membros do regime que, em algum momento, por não se adaptarem à mutante realidade do ditador de plantão (Stalin, Lenin etc), acabaram por sinalizar alguma divergência que, logicamente, não é tolerada nesse regime. Não deve ser por mera coincidência que Marx, após sofrer banimentos quando vivia na Prússia (àquela altura com regime mais autocrático), preferiu viver em países mais liberais (França e depois Inglaterra) onde pudesse ter a liberdade para expressar suas (equivocadas e sediciosas) ideias, tendo permanecido em Londres até a sua morte, mesmo após ser anistiado e poder, em tese, voltar a viver em sua terra natal. O fato é que Marx pode desfrutar da liberdade de expressão na Inglaterra, engajar-se nas atividades políticas e defender a revolução e insurgências à vontade, enquanto na Rússia no regime Soviético não se tolerava nenhuma oposição. Essa é a diferença prática entre liberdade e escravidão. Até o próprio Marx preferiu viver em um regime de plena liberdade, essa é a verdade.
4.5 A liberdade e a civilização ocidental
A Liberdade constitucional contra a ação arbitrária dos agentes do Estado não é um elemento capaz de, por si só, garantir que os cidadãos sejam livres. O que, complementarmente, funciona para efetivamente conceder a liberdade aos cidadãos é o estabelecimento de uma economia de mercado. Há, portanto, uma relação umbilical, pois essas liberdades constitucionais amparam e protegem aquela liberdade que o sistema econômico de livre mercado proporciona aos indivíduos, permite o esforço livre produtivo sem a intromissão de arbitrariedades estatais.
Na economia de livre mercado, as pessoas são, pois, livres para batalhar por uma posição na escala social, mediante o uso de seus recursos financeiros, intelectuais e laborais aplicados à divisão social do trabalho. O cidadão é livre para escolher o meio (profissão, ofício ou negócio) pelo qual será útil e agregará valor aos seus semelhantes. Na economia de planejamento centralizado isso não é possível. A autoridade central determina, a seu bel-prazer, conforme seus caprichos e vontades, direta ou indiretamente, a função de cada um no mecanismo econômico produtivo. O cidadão depende da boa vontade dos agentes do Estado para galgar posições, enquanto na economia de livre mercado é a vontade dos consumidores que será preponderante na determinação do sucesso de cada um e, a falta de recursos não será um problema incontornável, já que via sistema de crédito (pilar do sistema de livre mercado), os capitalistas do sistema financeiro estão sempre dispostos a conceder empréstimos a quem possa empreender de forma produtiva, remunerando o seu capital adequadamente.
O assalariado, nesse regime de liberdade, também não depende da arbitrariedade do empregador. Aquele que remunerar mal ou não oferecer condições satisfatórias aos trabalhadores, será punido pela migração natural dos bons funcionários para outras empresas concorrentes. Tanto empresário como trabalhadores estabelecem uma relação jurídica negocial na qual ninguém está fazendo favor a ninguém, mas sim ambos buscando um contrato de trabalho que tenha como frutos uma remuneração/produtividade adequada para seus interesses e, assim, há plena liberdade para que situações insatisfatórias sejam resolvidas mediante o voluntário encerramento da relação negocial entre ambos.
Nesse sistema, o processo de seleção social está sempre em aperfeiçoamento e o rendimento de cada indivíduo sobe e desce de acordo com o que ele consegue agregar de valor no mecanismo produtivo da economia. Fortunas diminuem e, por outro lado, pessoas nascidas na pobreza alcançam posições eminentes e consideráveis rendimentos, mediante o contínuo e livre plebiscito do mercado. Quando o governo não concede privilégios, aqueles que detêm fortunas precisam batalhar para mantê-la, pois são ameaçados de tempos em tempos pela chegada de competidores mais eficientes. A Suprema Corte do mercado acaba sendo o público consumidor (do qual o trabalhador faz parte plenamente) que, decidindo sem pressões estatais externas, escolhe alocar seu dinheiro para a empresa A em vez da B, para o profissional X em vez do Y, exercitando a sua livre vontade.
Por seu turno, o sistema socialista, além de aniquilar as liberdades dos cidadãos, tornando-os escravos do Estado, não permite que um sistema econômico funcione, ao eliminar o sistema de preços livres. Isso simplesmente inibe o correto cálculo econômico e desencadeia uma desintegração produtiva e social aguda, resultando no que sempre gerou todas vezes em que foi tentado: pobreza e caos. A prova viva e irrefutável disso é o fluxo de imigrantes desses países, que deixam tudo (família, cultura, idioma nativo, tradições, memórias afetivas etc) para trás em busca de um recomeço praticamente do zero. Ninguém deixa isso tudo para trás senão quando está vivendo sob as intensas agruras de uma sociedade em que a pobreza e o caos imperam.
A liberdade, como valor fundamental na sociedade, é tão crucial que pode explicar, por exemplo, a relativa estagnação de regiões como a China e boa parte da Ásia, bem como o Oriente Médio. Se esses povos registraram no passado grandes impérios e tiveram contribuições relevantes na construção do conhecimento científico e até cultural filosófico, o fato é que com o tempo foram sendo tragados por uma decadência e apatia, sendo ultrapassados pelos europeus e anglo-saxões, pelo Ocidente de forma geral. O que permitiu ao Ocidente avançar e galgar essa posição de destaque foi justamente a ideia de liberdade do Estado, de garantir as liberdades dos cidadãos e seu diretos e garantias fundamentais. Nessas outras regiões, que ficaram para trás, nunca houve uma preocupação em garantir efetivamente tais liberdades e a cultura que predomina favorece mandos e desmandos, confiscos e desapropriações, repressões e toda a sorte de violências contra indivíduos bem-sucedidos que, diante disso, ou se resignam mediocremente em seu país, sem o mesmo ímpeto produtivo de antes, ou buscam levar seus valiosos talentos e capacidades para outros países no Ocidente. Perde, nesse caso, o ambiente de negócios, que não permite florescer uma classe vigorosa de empreendedores que podem gerar renda e melhorar a precária condição de vida dos cidadãos ali. Perde, pois, a sociedade, como um todo.
Enquanto no Ocidente os indivíduos aspiram lutar por prêmios maiores, encaram o mundo como um campo de ação, onde podem ganhar fama, reputação, destaque, riqueza, via seu esforço laboral e de empreendimento no mercado, no Oriente as oportunidades de maior ascensão estão concentradas em servir ao príncipe, ao partido, ao Estado. Qualquer semelhança com o Brasil, aliás, não é mera coincidência.
Como Tácito bem disse, ao falar da decadência dos Romanos e de seu império, " Ruere in servitium", ou seja, eles mergulharam na servidão. Eis o real e evidente perigo de se conceder cada vez mais poder ao Estado. Eis, a importância de se lutar, portanto, pela liberdade.
A mentalidade anticapitalista - Mises
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