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Guilherme Veroneze e Thiago Manzoni

Capítulo 12- As Raízes Socialistas do Nazismo - Hayek

“Todas as forças antiliberais estão se unindo contra tudo que é liberal”. – A. Moeller van den Bruck


É lugar comum tachar o nacional-socialismo (nazismo) como uma simples revolta contra a razão, um movimento puramente emocional. Contudo, é uma visão muito distante da verdade. O Nacional-socialismo como doutrina foi apenas o ápice de uma longeva evolução de ideias de escritores de peso que deixaram a sua marca em todo o pensamento europeu. Houve uma coerência implacável nessa linha de ideias e no ápice atingido, pois trata-se de ideias do coletivismo que ganharam força e sobrepujaram uma tradição individualista que se mostrou incapaz de ser um real anteparo para a barbárie.


Não foram apenas autores alemães que forjaram esse caminho intelectual. Thomas Carlyle e Houston Stewart Chamberlain, Augusto Comte e Georges Sorel se destacaram tanto quanto os alemães para forjar o desenvolvimento da doutrina nacional-socialista. De todo modo, a evolução dessas ideias na Alemanha não representava uma força inevitavelmente implacável, pois ainda havia outras correntes de ideias vigentes antes da ascensão do nacional-socialismo. Mas o destino infelizmente se desenrolou a favor no nazional-socialismo.


O êxito do nazismo não se deu, como muitos alegam, porque a derrota na primeira guerra mundial se deu de forma injusta e humilhante despertando um forte senso de nacionalismo ou, ainda, porque foi uma reação do capitalismo ao socialismo. Pelo contrário, as ideias utilizadas vieram do lado socialista. Não foi, portanto, a burguesia que emplacou essas ideias, mas sim boa parte da causa repousa na ausência de uma forte burguesia para barrar o avanço e ascensão ao poder dos políticos que comungavam com o ideal coletivista. A burguesia acabou sendo tragada e vitimada por sua própria inação.


As ideias coletivistas alemãs não demonstravam contrariedade ou oposição aos elementos marxistas do socialismo, mas sim apenas aos poucos elementos liberais de internacionalismo e democracia que essas correntes diziam propugnar (em teoria). Foi, portanto, uma fusão de ideias convergentes (do nazismo e do socialismo) e de forças anticapitalistas e anti-liberais da esquerda e da direita, uma espécie de fusão de socialismo radical com socialismo conservador que acabou por destruir tudo que havia de liberal na Alemanha.


Não por mero acaso que os mais destacados precursores do nacional-socialismo – Fichte, Rodbertus e Lassalle – são reconhecidos, simultaneamente, dentre os fundadores do socialismo. De 1914 em diante, os trabalhadores e a juventude-socialistas foram arrebanhados por doutrinadores nacional-socialistas e a derrota na primeira guerra apenas foi um elemento a mais, como um catalisador que acelerou o avanço dessas ideias (e não a causa una e pura em si do hitlerismo). 


Hayek elenca o professor Werner Sombart, cuja obra famosa Händler und Helden (Comerciantes e heróis), de 1915, como um dos primeiros agentes inoculadores de ideias dessa mudança. Esse autor era defensor das ideias marxistas, com claro viés anticapitalista. Nessa obra, há uma saudação à ineitável guerra alemã (civilização heroica) contra a civilização comercial inglesa, que segundo ele havia perdido seu instinto guerreiro, domesticado pela cultura ou espírito mercantil. A busca pela felicidade individual era desprezada por ele. Sombart enaltecia a concepção germânica do estado, formulada por Fichte, Lassale e Rodbertus, “segundo a qual o estado não é fundado ou formado por indivíduos; tampouco constitui um agregado de indivíduos ou tem por finalidade servir a qualquer interesse individual. É um Volksgemeinschaft (N. do R.: literalmente, ‘comunidade do povo’) em que os indivíduos não têm direitos mas apenas deveres” (p. 158).


Segundo Sombart, os ideais de uma vida heroica germânica estavam ameaçados pela ascensão do pensamento mercantil inglês, que havia mergulhado a sociedade e os sindicatos em um conforto e começava a influenciar outros povos. Ele entendia que os outros povos desprezavam os alemães porque para eles a guerra era sagrada e nesse sentido, as atividades (sobretudo econômicas) deveriam estar subordinadas a objetivos militares. Considerar a guerra como desumana ou vil era uma mentalidade mercantil, para ele, pois há uma vida superior à do indivíduo - a vida do povo e do Estado.


Essas ideias encontraram eco em Johann Plenge, que era tão grande autoridade em Marx quanto Sombart. Para ele, a organização é a essência do socialismo por meio da aplicação dos ideias científicos aos problemas da sociedade. A ideia meramente abstrata de uma (pseudo) liberdade, porém embebida em concepções claramente socialistas, era marca comum nesses autores. Essa ode à organização, ao Estado e à vida econômica por ele dirigida, com um senso de responsabilidade coletiva (e não individual), impregnou até mesmo a atividade privada, como uma nova constituição corporativa do aparato produtivo que, segundo se propugnava, seria a mais alta forma de vida do Estado que já se vivenciou na Terra. 


O professor Johaan Plenge é o exemplo de um autor que até buscava, inicialmente, concilicar ideias de liberdade e de organização, porém foi se radicalizando com o passar dos anos e chegou a conclamar seus compatriotas no periódico socialista Die Glocke: “é tempo de reconhecermos que o socialismo deve ser uma política de poder, porque resume-se em organização. O socialismo deve conquistar o poder, nunca destruí-lo às cegas. E a questão mais importante e crítica para o socialismo em tempo de guerra entre nações não pode deixar de ser esta: qual desses povos é preeminentemente chamado ao poder por ser o líder exemplar na organização dos povos?” (p.160).


Outras de suas ideias prenunciariam e justificariam a nova ordem de hitlerista que ascendeu ao poder alguns anos depois: “do ponto de vista do socialismo, que consiste em organização, acaso o direito absoluto de autodeterminação dos povos não equivale ao direito de anarquia econômica individualista? Estaremos dispostos a conceder inteira autodeterminação ao indivíduo na vida econômica? O socialismo coerente só pode conceder ao povo o direito de incorporação de acordo com a distribuição real de forças historicamente determinadas’” (p.160).


O desprezo pela liberdade individual e o senso de culto ao Estado e à organização é explícito e inegável. Essas ideias gozavam de aceitação em círculos de cientistas e engenheiros alemães, como pondera Hayek, citando o exemplo do famoso químico Wilhelm Ostwald.


Esse conjunto de concepções coletivistas também se alinhavam com as de Walter Rathenau, homem de negócios que serviu como ministro das Relações Exteriores da Alemanha ainda durante a República de Weimar. Suas ideias econômicas moldaram em boa parte as concepções que prevaleceram por décadas até o pós primeira guerra mundial. As ideias que forjaram o nacional-socialismo, portanto, já estavam circulando e apenas precisavam de adquirir momentum para se tornarem dominantes.


É necessário lembrar, ainda, no mesmo sentido, que no regime de Bismarck, em 1879, a Alemanha já buscava se portar como um Estado revolucionário que detinha um sistema econômico superior e mais avançado, como se designada pela História para tal missão. As sementes do coletivismo que desembocaram no nacional-socialismo já estavam plantadas há décadas, os requisitos do socialismo já estavam historicamente inoculados no governo, na cultura e na intelectualidade.


Com o tempo o que ocorreu na seara do aparato do Estado, conforme observa Paul Lensch, foi um avanço coordenado dos sociais-democratas sobre parcela considerável dos cargos que poderiam obter no Reischtag, nos conselhos municipais, na justiça do trabalho, nos institutos de previdência social e assim por diante. Penetraram a fundo no organismo do Estado que passou a exercer cada vez mais influência sobre as classes trabalhadoras. O Estado passou por um processo de socialização e a social-democracia passou por um regime de estatização.


Paul Lensch e Johaan Plenge, conforme observa Hayek fazendo uma retrospectiva intelectual, foram os fornecedores de ideias socialistas que muito influenciaram os doutrinadores imediatos do regime, sobretudo Oswald Spengler e A. Moeller van den Bruck. Como Spengler mesmo dissera em 1920 “O velho espírito prussiano e a convicção socialista, que hoje se odeiam com um ódio de irmãos, equivalem à mesma coisa”, ou seja, os próprios doutrinadores mais imediatos do regime nacional-socialista entendiam a convergência entre o socialismo (prussiano) e o Nacional-socialismo (germânico). Para Spengler, homens como Hardenberg, Humboldt e todos os demais reformadores liberais eram tidos pejorativamente como “ingleses”.


Uma distinção interessante sobre as clivagens nas sociedades ingles e alemã é que enquanto a estrutura da nação inglesa baseou-se na distinção entre ricos e pobres; a da nação prussiana, na distinção entre comando e obediência. A concepção de classes e o que elas representam foi qualitativamente deveras distinta, o que explicita as diferenças de mentalidade entre os dois ethos que operavam nessas sociedades. Oswald Spengler, no mesmo sentido, analisa que “a Prússia existia um verdadeiro estado, na mais ambiciosa acepção da palavra. Rigorosamente falando, lá não podia haver indivíduos. Todos os que viviam dentro do sistema, que funcionava com uma precisão de mecanismo de relógio, eram, de certo modo, uma peça desse sistema. A direção dos negócios públicos não podia, portanto, achar-se nas mãos de particulares, como pressupõe o parlamentarismo” (p.164). O dirigismo e autoritarismo, com dever de estrita obediência, são o modus operandi vigente nos regimes coletivistas e, portanto, compreender a cultura que opera em uma sociedade é relevante para compreender as ideias que regem seu funcionamento. 


Moeller van den Bruck declarava que a primeira guerra mundial fora uma derrota do socialismo perante o liberalismo, ou seja, reconhecia no liberalismo o arqui-inimigo do modelo alemão. Além disso, vangloriava-se do fato de que “não há hoje liberais na Alemanha: há jovens revolucionários e jovens conservadores. Mas quem desejaria ser liberal? ...O liberalismo é uma filosofia de vida à qual a juventude alemã volta hoje as costas com nojo, cólera e um desprezo especial, pois não há nada mais exótico, mais repugnante e mais contrário à sua filosofia. A juventude alemã dos nossos dias reconhece no liberalismo o arqui-inimigo”.


O fato é que a juventude alemã se aferrou a tais concepções e operou a fusão do nacionalismo com o socialismo. Do fim da década de 1920 até a ascensão de Hitler, formou-se em torno da revista Die Tat um grupo de jovens que eram os expoentes desse movimento intelectual e a obra Ende des Kapiíalismus (O Fim do Capitalismo), de Ferdinand Fried, editor da citada revista, foi um dos produtos mais característicos desse Zeitgeist  (espírito da época), da cultura política ali emergente.


É preciso ficar claro, portanto, que o nacional-socialismo foi produto de uma evolução de ideias europeias convergentes (não exclusivamente alemãs) que propugnavam com notada soberba um dirigismo, uma organização econômica da sociedade que, decerto, só pode ser operada na prática com autoritarismo e flagrante dano às liberdades individuais. Tanto o ápice do socialismo prussiano como do alemão foram subprodutos políticos desse mesmo estado de ideias que se desenvolveu na Europa da segunda metade do Século XIX até o início do XX, quando ganhou momentum, que certamente influenciou a ocorrência das duas grandes guerras mundiais, ceifando a vida de tantos cidadãos, além de ter ocasionado, domesticamente, a morte de milhões de civis por conta de sua origem étnica, sua fé e por conta de terem em algum momento ousado se posicionar contra tais regimes. Esse é o regime atroz que as ideias do coletivismo é capaz de engendrar. 


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