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Capítulo 10- Por que os piores chegam ao poder - O caminho da servidão - Hayek

“Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta”. – Lord Acton


Uma ideia muito difundida, em nome da relativização da adoção de regimes totalitários, é colocada sob a mesa frisando que tais recentes regimes foram colocados em prática por canalhas e bandidos, como Hitler e Mussolini. Por outro lado, se fossem tocados por indivíduos honestos, o resultado seria outro, para o bem da comunidade, alega-se. O totalitarismo seria um sistema poderoso tanto para o mal, como para o bem. O uso dele, na prática, é o que importa, não sendo correto fazer uma condenação a priori, alega-se.


Porém, há razões abundantes para entender que os aspectos mais repugnantes dos regimes totalitários não se dão por mero acidente ou caso fortuito, mas sim são subprodutos que inexoravelmente aparecerão em tais regimes (a história mostra isso, aliás). Assim como um planejador estatal sempre virá a enfrentar dilemas e conflitos de interesses econômicos e de atores políticos que só se resolverão por meio do uso ditatorial da força, da coerção do aparato totalitário, o próprio ditador tem de escolher entre o fracasso e a adoção de um notório desprezo pela moral comum, para se manter no poder. Por tal razão é que os sistemas totalitários atraem os piores tipos de seres humanos para exercê-lo, sobretudo nos mais altos níveis.


O chamado “embasamento moral do coletivismo” já foi muito teorizado e debatido, porém mais do que intenções e teorias, o que importa são os reais resultados morais. A interação prática entre a moral (teórica) e as instituições reais que colocarão em prática o regime, podem (como aliás sempre ocorre) levar a uma moral completamente destoante do que fora inicialmente imaginado. A moral dominante será produto direto da qualidade (ou falta dela) dos que conduzem o regime e das exigências desses que o conduzem com mão de ferro. E nesse sentido, o célebre aforismo de Lord Acton de que “o poder absoluto corrompe de maneira absoluta” se demonstrou sempre implacável, historicamente.


Hayek faz considerações sobre os estágios que podem preceder a adoção de um regime totalitário. O clima de insatisfação com os processos democráticos nos parlamentos, mais demorados por sua própria natureza, pode impelir os ânimos que clamam por um regime de maior poder para tratar dessas questões concernentes à vida em sociedade. Daí o anseio por um agente forte, com capacidade de fazer as coisas andarem, encontra espaço em parte da sociedade. Surgem, então, partidos que se vendem com uma roupagem distinta, como se organizados em moldes militares.


Para impor o regime totalitário à toda a nação o líder deve conseguir reunir um grupo de apoiadores que queiram defender aguerridamente e se submeter a tal regime. Porém, nem sempre se consegue apoio substancial e mesmo os partidos socialistas por vezes vacilaram inicialmente quanto à aplicação de métodos totalitários. Sentiam-se, de certo modo, inibidos, pelos anseios democráticos que diziam ter e não detinham um grau de insensibilidade, convicção e coesão suficientes para executar a tarefa de tomar a força o poder. Como resultado, houve a ascensão de regimes como o nazismo e o fascismo que não detinham inibições ou dúvidas quanto ao que fazer e como fazer (de forma totalitária) no poder.


Conseguir um grupo numeroso e forte, com ideias homogêneas e que seja constituído pelos melhores elementos de uma sociedade, é tarefa difícil na realidade política. Isso se dá quanto mais elevada a educação e inteligência de um grupo, mais haverá diferenças sobre gostos e opiniões, mais será difícil concordar acerca de uma hierarquia de valores. Daí, se se quiser obter uma homogeneidade e alto grau de uniformidade de opiniões, teremos de descer às camadas em que menos se pensa, menos se reflete, mais clichês e ideias simplistas a pré-concebidas encontram ressonância, ou seja, descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores, em que pensa de modo quase dogmático, onde prevalecem os instintos mais primitivos e comuns. O denominador comum acaba sendo maior em tais estratos sociais.


Citando diretamente Hayek, “quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte para impor aos demais suas ideias sobre os valores da vida, jamais serão aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a ‘massa’ no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos independentes” (p. 135).


Contudo, se o ditador não encontrar massa suficiente para realizar seu intento, passará a tentar cooptar também o apoio dos indivíduos mais dóceis e simplórios, sem forte convicção própria, que estão prontos a aderir ao sistema de valores previamente elaborado. Esses que se deixam influenciar com facilidade, pela manipulação de suas paixões e emoções, com o tempo, engrossarão as fileiras do partido.


O terceiro elemento negativo da seleção relaciona-se ao esforço que o demagogo empreende para criar um grupo coeso e homogêneo de prosélitos. Psicologicamente é mais fácil unir as pessoas contra algo do que para propor algo positivo, construtivo. A antítese “nós” x “eles” é um ingrediente vital para solidificar apoios, laços e congregar, para levar um grupo (ou uma turba) a uma ação comum. Despertam-se, assim, os piores tipos de sentimentos e de inclinações daqueles que comporão fileiras no regime totalitário. Na Alemanha, por exemplo, o judeu figurou com o inimigo, depois as plutocracias, tendo por base comum o sentimento anticapitalista. O antissemitismo e o anticapitalismo são dois movimentos consubstanciados e poucos foram capazes de perceber.


É inconcebível que um regime totalitário que não atenda aos interesses de um grupo limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. Não é por mero acaso que essa seja sempre a roupagem que esses movimentos utilizam.


O coletivismo, em forma mundial, parece inconcebível, a não ser que fosse para atender a interesses de uma pequena elite dirigente. Contudo, problemas de ordem moral também adviriam, pois os socialistas têm uma concepção que o capital é pertencente à nação, e não aos indivíduos e, portanto, não estão inclinados a ceder ao estrangeiro aquilo que proclamam como um dever para seus concidadãos.


Uma das contradições mais visíveis do coletivismo é que, malgrado tenha uma suposta concepção na moral humanista, ele só se mostra mais praticável em um grupo relativamente menor. No campo puramente teórico, a filosofia coletivista é internacionalista, mas ao ser colocado em prática, opera sob uma orientação de forte nacionalismo (vide a URSS e a Alemanha nazista). A teoria é uma coisa, e a prática acaba sendo o oposto do que se pensava (ou pregava) a priori, como sempre ocorre nos regimes totalitários.


Se a comunidade ou o Estado têm preponderância sobre os indivíduos, possuem objetivos considerados ou declarados superiores, somente os indivíduos que trabalham nesse sentido, para realizar tal missão, podem ser considerados membros (plenos) dessa comunidade. Sua dignidade e reconhecimento derivam desse alinhamento e não da condição de ser humano. O próprio humanismo cai por terra, na prática, sendo ele em grande medida uma característica muito mais afeta aos regimes liberais que prezam pelo indivíduo e pelos direitos humanos, do que aos totalitários.


O desejo de pertencimento a um grupo, tão comum nos seres humanos, acaba sendo reforçado no regime totalitário, pois tal desejo só poderá ser realizado com essa adesão ao pensamento desse grupo que comunga do ideal socialista, ocasionando uma tendência a um particularismo e exclusivismo e a um sentimento de superioridade em relação aos que pensam de forma diferente. E para piorar, muitos indivíduos tendem a se portar de maneira diferente quando estão em bandos, tendem a irrefrear sentimentos de oposição e até de perseguição aos diferentes, de forma até ensandecida, com a razão completamente prejudicada.


Ademais, em uma escala maior de exclusivismo, as propensões ao nacionalismo e ao imperialismo, típicas dos regimes totalitários, por vezes chegam a não serem disfarçadas nem mesmo por teóricos que glorificam o poder, como Bernard Shaw, que dizia que “o mundo pertence necessariamente aos estados grandes e poderosos, e os pequenos devem ser incorporados, a eles ou esmagados e aniquilados”, como bem lembrou Halévy, Élie em sua obra “a Era das tiranias”. O imperialismo Soviético e Nazifascista exemplificam bem essa tendência irrefreável dos regimes totalitários, que buscam esmagar militarmente e subjugar nações menos poderosas.

Há uma notável diferença entre a tradição liberal, que é essencialmente cética quanto ao poder, e a coletivista, que enxerga o poder como um fim em si mesmo, como uma ferramenta útil para poder alcançar uma hegemonia política que só pode sobreviver por meio desse exercício totalitário por um pequeno grupo dirigente. Ainda que alguns tentem argumentar que privar os indivíduos de seu poder e de sua liberdade poderá (apenas em teoria) criar mais equidade na sociedade, o problema (do mundo real) é que ao se deixar o poder nas mãos desse pequeno grupo cria-se um poder pernicioso que é infinitamente mais forte para fazer as piores arbitrariedades contra qualquer indivíduo ou grupo que se aventure a ele se opor.


No âmbito das relações econômicas e como se dão a relações de poder, é absolutamente fantasiosa a alegação que as diretorias de empresas detêm um poder equivalente a um comitê de planejamento central, como tentam nos fazer acreditar os defensores dos regimes coletivistas. Em uma sociedade livre, cada indivíduo ou empresa exerce apenas uma pequena fração de poder, enquanto no regime totalitário esse pequeno comitê exerce o poder concentrado e até absoluto. Logo, fracionar ou descentralizar o poder entre indivíduos ou entidades, como é a pedra angular no regime de livre concorrência, é que constitui o mecanismo eficaz para diminuir a tal “dominação do homem pelo homem” condenada pelos coletivistas.


A separação entre a esfera dos objetivos econômicos e a dos políticos é uma garantia de liberdades individuais. E ainda que pontualmente o poder econômico de particulares possa provocar episódios de coerção, tal poder jamais será na mesma gravidade que aquele exercido pelos totalitários que definem todos os aspectos da vida de um cidadão. A fusão do poder político com o econômico cria um grau de dependência e de baixíssima ou inexistente margem de decisão, que chega a ser um regime análogo ao da escravidão.


Outra importante distinção entre os regimes liberais e os coletivistas precisa ser feita. Enquanto no primeiro a máxima de que “os fins justificam os meios” representa a negação da moral, no regime totalitário essa máxima se aplica como uma luva. Se as maiores atrocidades forem feitas em nome do suposto bem da comunidade, tudo se torna justificável. A razão do Estado (raison d'État), em tal regime, não conhece outros limites que não os da sua própria conveniência.


O campo da moral e da virtude, sob um regime totalitário, passa a ser algo deveras relativizado e quando presentes certas tendências culturais prévias isso pode ser ainda mais explorado e agravado. Os alemães ou os “prussianos típicos” detinham qualidades que eram altamente reconhecidas por todos. Poucos negarão que “alemães, em geral, são laboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos a ponto de se mostrarem insensíveis, conscienciosos e coerentes em qualquer tarefa à qual se dedicam; que possuem um acentuado senso de ordem, dever e estrita obediência à autoridade, e que muitas vezes dão provas de grande capacidade para o sacrifício pessoal e de admirável coragem diante do perigo físico” (p.141), como aponta Hayek.


Porém, faltava em um grau não desprezível uma característica que os alemães chamam de Zivilcourage, isto é, uma coragem ou convicção de defender seus pontos de vista em nome do que julga correto (mesmo a custo de um risco pessoal), algo que cobrou seu preço, perante as ordens arbitrárias dos superiores hierárquicos, característica que facilitou o avanço do Nazismo. Associadas a esse conceito nuclear da Zivilcourage também estão características como a consideração pelos fracos e doentes, um saudável desprezo e antipatia pelo poder, algo que somente uma duradoura e vigoroso tradição liberal pode criar nos homens, tradição esse que certamente faltava na sociedade alemã.


Não é surpresa constatar que essas virtudes da tradição liberal, individualista, tornam mais difícil o exercício do controle social que vem de cima, bem como são uma qualidade eminentemente social, que propicia um convívio mais fluido no seio da sociedade e com menos propensão a concentração de poderes. Não por mero acaso essas virtudes prevalecem em sociedades comerciais, livres, e são raras em sociedades do tipo coletivista-militar.


Hayek pondera, contudo, que não é que o povo dessas sociedades com regimes mais coletivistas esteja destituído de qualquer fervor moral, mas sim que o movimento nacional-socialista desperta um fervor emocional e de cunho moralista tamanho que só pode ser comparado aos grandes movimentos religiosos da história. Tomados por esse fervor e senso de missão ou obrigação para com a entidade suprema, em nome do “bem comum”, tais indivíduos passam a demonstrar intolerância e a exercer uma brutal supressão da dissidência, um completo desrespeito pela vida e pela felicidade do indivíduo, pois a busca do objetivo social comum não pode ser limitada pelos direitos ou valores de qualquer indivíduo. Os interesses com coletivo preponderam sobre tudo, como consequência das ideias inculcadas tão habilidosamente pelo regime.


A atrocidade moral provocada pelos regimes coletivistas implica não apenas que o indivíduo se submeta a privações, mas que esteja pronto para violar qualquer regra moral que conheça, para a realização do fim proposto pelo chefe supremo, pelo regime, de modo que as pessoas acabam virando meros instrumentos que não devem ter convicções morais próprias. Uma vez que nem todos os cidadãos se sujeitarão de bom grado a isso, um mecanismo de recompensas com posições de poder é colocado em prática, atraindo os tipos mais inescrupulosos e ambiciosos. Nessas sociedades coletivistas, inclusive, são diversas as posições no aparato do regime em que é necessário realizar os piores tipos de serviços, isto é, praticar a crueldade e a intimidação, a duplicidade e a espionagem e, é exercendo com maestria essas atividades que as pessoas ganham credenciais para ascender a outros patamares na alta hierarquia na máquina totalitária.

Como conclusão, os incentivos morais, pela própria natureza dos regimes coletivistas, acabam sendo sempre os piores possíveis e provocando os piores desastres humanitários.

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